domingo, 28 de novembro de 2010

textos

"Assistir a um filme é estar presente a uma narração em aparição luminosa.

Narrados pela luz e pelo tempo, pessoas e lugares, um mundo e uma história que não existiam antes que os víssemos no filme nascem, aparecem e desaparecem durante a projeção.

O poder do cinema como educação cultural, política e visual vem do muito que assistir a uma sessão de cinema tem a ver com uma participação ritual ou mística. O espectador é convidado a participar de uma liturgia da luz e do tempo, de uma cerimônia em que a memória e a história são trazidas em pedaço de filme numa espécie de oferenda visual. A distância física e racional que o separa do que está vendo e ouvindo é reduzida enquanto ele é imerso em imagens que reforçam vínculos irracionais com a sociedade e o tempo vivido.

Não podemos esquecer, também, que o cinema surge na longa história da educação visual feita de representações, criação e uso de imagens e narrações, e é herdeiro e mantenedor da arte da perspectiva renascentista – arte da representação artificial do real.

A perspectiva, teoria e técnica geométrica e matemática, ao ordenar objetos e pessoas no espaço do plano de acordo com distâncias e proporções, ordenam também o tempo que impregna pessoas e objetos e o ar – o espaço – que os circunda. Faz com que o tempo passe a ser visível. É uma grade estrutural que fornece uma existência visível par a história e uma estrutura técnica, estética e política que habita o interior da câmera cinematográfica.

Longe de ser um instrumento neutro, a câmera cinematográfica tende a ser uma máquina política: ao apresentar visualmente as imagens, já as interpreta e participa ativamente de seu conteúdo. Ao vermos um filme, vemos histórias em imagens pré-interpretadas pela gramática visual, política e social da técnica de captação de imagens das câmeras e filmadoras. Essas imagens participam da relação social e simbólica que liga os espectadores às imagens e oferece reconhecimento e sentido aos filmes assistidos. Daí ser possível falar de uma linguagem visual, de uma educação visual e sonora, de uma educação cultural.

Como se prospectam matérias-primas e elas são transformadas, a indústria cinematográfica capta imagens no mundo externo ou as fabrica nos estúdios. Cada fotograma, cada sequência filmada poderá ser extraída de seu contexto, retirada de sua continuidade temporal e tratada como peça de uma grande imagem, ou produto final, que será o filme. O real filmado é transformado em células temporais, ligadas umas às outras numa sequência de movimentos constantes: em ritmo, pulsação e fluxo de luz. O tempo será estruturado numa nova narrativa, e cada filme será uma nova interpretação artística e política da história.

Mesmo quando “encena” ou “representa” o passado, todo filme é uma representação no presente e uma forma de conhecimento desse presente. A história do presente que consulta, pergunta ao passado e o devolve em imagens e ideologia.

Emoção e inteligência fundem-se nas imagens em movimento no cinema. E elas, vistas por todos, ressoam diferentemente no interior de cada espectador, deixando-se interpretar pela sua visão histórica, estado emocional, disposições psíquicas, desejo, educação política e visual. Os filmes são consumidos esteticamente por espectadores “nacionais” como uma espécie de mercadoria psicológica em que o “universal”, a política do capitalismo e o cultural estão mesclados, fundidos, e são tanto economia quanto política e cultura. São obras complexas, que escapam de simples explicações aparentemente lógicas e claras, uma excitação tanto para o intelecto como para a sensibilidade."

(ALMEIDA, Milton José de. Práxis 5: ensaios – paz, cidadania, cultura, violência, liberdade, trabalho, educação pública. Com apresentação de Roberto Romano. Textos originalmente publicados na Revista E do Sesc São Paulo, em setembro de 2002. São Paulo: Sesc São Paulo; Lazuli, 2003. Pp. 17s.)

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